Mogg Mester

Foto: Manuela Medeiros

Bio

Mogg Mester é Médico Veterinário, formado pela UFBA, Pós graduado em Inspeção industrial de produtos de origem animal, e funcionário público da Prefeitura Municipal de Camaçari. Além disso é psicólogo formado pela Escola Bahiana de  Medicina e Saúde Pública, pós graduando do curso de Psicossomática Jungiana do IJBA. Atualmente participa do projeto Guerreiros folclóricos como romancista e roteirista, junto com Joe Santos e Unique. Foi convidado para ser editor e produtor de conteúdos do Clube de Autores de Fantasia(atualmente em fase de transição de um provedor a outro) e publicou o volume um da trilogia A Auriflama do caos, pela Pimenta Malagueta. Tem participação na Revista Beco das Palavras onde publicou dois textos, um cada volume. Nas horas vagas, é joalheiro e gosta de esculpir anéis. Mas, quando são mesmo as horas vagas?

Produção Literária

Cheiro de capim cortado

Se soubessem o que realmente aconteceu, quem o conheceu jamais se recordaria dele por quem foi, mas pelo que se tornou. E pelo seu fim. Raramente se foge a essa regra.

Tudo começou quando era jovem. Menino novo, nascido na imundície do cimento, vez por outra se via metido no interior do estado, em sítios dos tios, embrenhado em aventuras-sonho com primos e amigos.

Mas, de tudo isso, do que mais gostava era o cheiro do capim. Não somente capim, mas o cheiro de capim cortado. Odor agridoce, meio fermentado, meio perfumado, que exalava toda vez que os tratores cortavam os pastos de colonião para dar de comer aos animais.

Jamais se esqueceria da primeira vez em que sentiu aquele cheiro maravilhoso, repleto de nostalgia de origem desconhecida. Ainda se recordava de como se deitou sobre o capim cortado, aspirando aquele aroma tão gostoso quanto o perfume feminino (que aspiraria em demasiado alguns anos mais tarde). Contudo, ali, era apenas um garoto com aventuras-sonho para viver-sonhar, apaixonado por um cheiro melífluo e transluzente; verde.

Quando tinha que retornar à cidade, era com dificuldade que se adaptava à antiga rotina. Ocasionalmente ainda encontrava algum resquício daquela exalação deliciosa quando, de ônibus, passava por algum lugar onde funcionários da prefeitura rebaixavam o mato de acostamentos e canteiros. Era um odor residual, contaminado pelo fel dos combustíveis queimados, apesar de o arremeter às lembranças dos lugares que amava.

O tempo foi passando e veio a adolescência. Ele, saudoso, vivia recordando o bom tempo em que podia dormir uma tarde inteira sobre o capim cortado, sem pudores ou compromissos com que se preocupar. Precisou suprir a falta com o cheiro de mulher (em demasiado), coisa não muito diferente, mas que provoca as mesmas sensações gostosas que o odor de capim ceifado traz, sem, contudo, nunca superá-las.

Ele se casou, teve filhos. Arranjou uma casa com varanda e quintal na Alameda dos Algodões Flutuantes, coisa cada vez mais rara em cidades grandes, onde podia cultivar um jardim, só para poder cortá-lo e sentir sua essência. Vez por outra nevava algodão e o aroma se completava.

Entretanto, o capim custava a crescer. E ele, em sua urgência, fascinado por aquele odor, buscava outras formas de senti-lo. Comprou uma fazenda, o que no início foi bom, mas não podia passar o tempo todo nela; tinha um trabalho a executar na cidade.

Sua fome por aspirar mato ceifado foi crescendo à medida que os meses passavam. Já não bastavam fins de semana na fazenda; nem jardim, nem parques, nem capim arrancado de canteiros. Por que não faziam um perfume de capim cortado?

A obsessão chegou a tal ponto que em, um feriadão na fazenda, meteu-se no mato e desapareceu como um curupira, como antes fazia em suas aventuras-sonho. Não sabia por quê, mas havia se inspirado ao ver a chuva de algodões na alameda.

 

E, enquanto caminhava por entre as touceiras de capim colonião, arrancava pedaços e aspirava seu cheiro, cada vez mais seduzido pelo mesmo, viu um boi parado, pastando docilmente em meio àquele pasto infindável. Invejou-o.

Queria ser como aquele animal: livre, despreocupado, fungando eternamente aquele cheiro enquanto ruminava e pensava na próxima vaca em que montaria. Sim, desejava aquilo. E como.

Inconformado com sua realidade, decidiu se deitar um pouco e adormecer como antigamente. Arrancou alguns pedaços do colonião, fez uma cama verde e se jogou sobre ela. Ficou aspirando o perfume da forragem enquanto mergulhava em um sono profundo, sem sonhos. Quase uma morte.

Quando já anoitecia, acordou assustado. A experiência havia sido tão boa que caíra em um esquecimento genuíno. Ego perda. Ego morte.

Tentou se levantar em um pulo, como fazia enquanto criança, mas sentiu dificuldade. Seu corpo estava pesado demais. Quão gordo deveria estar para que, aos quarenta e três anos, não mais pudesse levantar de supetão?

Buscou esticar as pernas e lançá-las para cima, para ajudar na manobra, contudo mesmo isso havia se  tornado  quase impossível  naquele  momento.  Sua  cabeça  pesava,  seu pescoço parecia gigante e sua boca salivava profusamente.

Achando-se doente, talvez com dengue ou raiva, pôs-se de quatro, única posição confortável, quase devidamente adequada, e começou a caminhar para o riacho que margeava a fundo de sua fazenda. Estava sedento; podia jurar que beberia mais de quarenta litros de água.

Ao chegar lá, meteu-se a tentar ingerir a água. Mas sugá-la era muito difícil, e usar as mãos, presas ao chão, impossível. Usou a língua para levar a bebida preciosa à boca.

Foi então que, com um sobressalto, percebeu a mudança em seu rosto. O reflexo da água, como um espelho, mostrou-lhe a verdade e o pôs em um pesadelo em que jamais estivera metido. Viu as orelhas pendentes, os olhos esgazeados e as grandes narinas; viu-se transformado em um boi gordo. Encontrou-se exasperado. Pensou na família, no trabalho e em outras coisas.

Sem uma resposta para sua pergunta: “Como, que diabos, aquilo havia acontecido?”, começou a pensar em todas as possibilidades: seria um sonho-aventura? Estaria delirando? Será que havia aspirado capim demais e estava chapado? Até onde sabia, capim não era alucinógeno. Mas bem que desconfiara daquela sensação de diluição, de ego perda e ego morte…

Milhões de outras perguntas passaram por sua cabeça bovina. E se não voltasse a acordar? E se aquilo fosse realidade? O que faria? O que diria para a sua mulher? E como disse um filósofo uma vez: todo “e se”, já é. E já era mesmo. Não voltou.

Em meio a todo aquele desespero, recordou-se do cheiro do capim, seu único consolo, e da fome voraz que sentia. Correu o mais depressa possível para o pasto para se esbaldar na forrageira que quanto mais cortava com os dentes, mais fazia suas narinas mergulharem naquele aroma gostoso, e mais se deleitava com aquilo.

Os dias foram passando. Enquanto a família o procurava junto com a polícia, ele ruminava e aspirava aquele mato preso com os dentes. Mastigava, engolia aquele aroma. Morde, morde; mastiga, mastiga; tritura, tritura; engole…

Até que um dia um homem veio e o arrebanhou com outros animais do pasto. Quem era aquele? Sua memória falhava, mas, se não se enganava, era Aderval, seu peão de confiança. Certamente seria levado para o curral, onde todos os dias teria mato cortado e triturado para comer. Tinas e mais tinas dele. E assim foi feito.

Após alguns sóis e luas, ele e seus companheiros foram conduzidos para uma grande caixa de madeira vazada, com rodas de borracha, que logo entrou em movimento. Enquanto viajava, imaginava outro grande pasto cujo capim exalava mais do que o anterior.

Em breve, viu-se desembarcando em outro curral. Entretanto, à frente dele havia um prédio grande e branco, com grandes janelas envidraçadas, que se erguia imponentemente. Dele exalava um cheiro repugnante. Homens de branco com chapéus engraçados iam olhá-los, metiam as mãos em seus traseiros sem lhes perguntar se queriam aquilo e iam embora, sem lhes dizer nada, para averiguar algo em gados de outros pastos, instalados em currais próximos. Nada de capim.

No outro dia, pela manhã, acordou faminto. Mais homens de branco apareceram e o levaram junto com seus amigos por um corredor estreito, enquanto uma ducha de água fria esguichava sobre  eles  um  líquido  amargo.  “Água clorada”, pensou.

O engraçado é que os bois dos outros currais também haviam sido levados, mas não retornaram. Será que estariam no pasto?

À medida em que se aproximava da porta por onde seus amigos sumiam para não mais aparecer, ainda sonhava com o cheiro de capim enquanto o odor repugnante entrava-lhe pelas narinas.

Enfim chegou sua vez. Quando entrou naquele box repleto de uma sopa vermelha, mistura de água e sangue, foi que entendeu o que estava fazendo ali. Sem ter para onde fugir, fechou os olhos e esperou que a pistola pneumática o atingisse na cabeça e o despachasse direto para a terra das aventuras-sonho.

Sua busca e encontro foram nobres, afinal, não é todo dia que se sente o cheiro de capim cortado ou se tem a chance de conhecê-lo. Mas era uma pena que, em sua ansiedade de desfrutar aquele aroma, não houvesse escolhido o tipo de gado que queria ser: de corte ou de leite. Como o Universo sempre nivela as coisas por baixo, ficou no grupo de corte.

E enquanto sua família o procurava, esperando o retorno de sua viagem sem volta enquanto assistia os algodões flutuarem, degustavam sua carne alimentada pelo capim cujo cheiro permitiu que o embriagasse e o mantivesse cego. Mas ele jamais acordaria. Viveria eternamente nas terras das aventuras-sonho, virando restos e sendo digerido, exalando o cheiro de que nem mesmo sua carne se livrara.

Publicações

  • Participa do Panorama da Literatura Brasileira, Antologia, 2015;
  • A Auriflama do caos: A nova ratoeira, 2013;
  • Revista Beco das Palavras, Ano 1, Nº2.

Contato

lucaslopan@yahoo.com.br