Bio
Mestranda no “Programa de Pós-Graduação em Literatura e Cultura” da Universidade Federal da Bahia, a baiana Cátia Lantyer desenvolve uma pesquisa pelo viés teórico da Literatura Comparada, com as obras “Onde andará Dulce Veiga? Um romance B”, do escritor Caio Fernando Abreu, e o filme “Cabra marcado pra morrer”, do cineasta Eduardo Coutinho. Cátia também dedica-se à fotografia: recentemente, três de suas obras sob o tema “A urbis e a imagem”, fizeram parte do “Circuito das Artes”, em Salvador.
Os dois contos selecionados pelo “Mapa da palavra” – “O boletim do sexto ano” e “Do fel ao céu” – são parte de um projeto de livro, direcionado ao público infanto-juvenil, tendo por fio condutor as aventuras infantis da protagonista, Clarita. A narrativa tensiona e desconstrói limites e papéis sociais que reproduzem a subordinação feminina, a partir da criança.
O olhar de Cátia Lantyer está voltado para o sujeito contemporâneo, inadequado, livre e sempre em construção, como também para suas aparições na literatura, no cinema e na arte.
Produção Literária
O boletim do sexto ano
Clarita cursaria o sexto ano.
Todos os amigos – e também seus irmãos – preveniram a menina de que esse seria o ano escolar mais difícil de sua vida.
– Você não sabe o que lhe espera! – avisou Dido, o mais estudioso de seus irmãos.
Na segunda-feira, vestindo uma camisa quadriculada marrom e branca, de colarinho e com um bolso do lado esquerdo, um short preto com listras laterais brancas, calçando as sandálias de borracha de sempre, Clarita recebeu uma missão de sua mãe:
– Vá até aquela casa que fica na praça, onde está escrito Foto São José, e se deixe fotografar em tamanho três por quatro. – e, estendendo a mão, completou – Tome aqui o dinheiro!
Uma dessas imagens serviria para ser colada na capa de seu mais esperado boletim, o do sexto ano. Para a Foto São José, Clarita se debandou correndo.
Três foram os comandos:
– Levante o queixo, suspenda os ombros e não pisque.
Finalmente, o fotógrafo anunciou que seu trabalho estava terminado.
– Prontinho!
Clarita se levantou, entregou a ele um canudinho de dinheiro e o homem se pôs a preencher um recibo com o carimbo PAGO, em letras grandes e azuis. Enquanto escrevia, anunciava:
– A impressora está quebrada, mas em cinco dias estará tudo pronto. Volte para buscar!
E, por fim, referindo-se a ela como a um garoto, perguntou o nome que deveria escrever naquele papel.
– Fala aí, moleque! Qual é o seu nome?
Sem achar que deveria punir aquele homem por ser tão grande e ainda não saber diferenciar um menino de uma menina, e já que, afinal, não se apresentara num lindo vestido rosa, contrariando as regras que, na verdade, sua mãe nunca estabelecera, Clarita resolveu que eram sua mãe e a praga dos piolhos as únicas responsáveis por aquele divertido engano.
Se aquele homem que esteve com ela por cerca de dez minutos, pensou que Clarita fosse um menino, ela decidiu ser o que o fotógrafo viu, e respondeu:
– Tito. – este era o nome de seu outro irmão.
Depois de esperar cinco dias, Clarita voltou à Foto São José, estendeu a mão com o recibo, entregando-o ao mesmo homem que a havia fotografado. Ele abriu uma caixinha cheia de rostos e, sem revelar como, rapidamente retirou uma embalagem plástica verde, na qual quatro imagens do rosto de Tito apareciam de um lado e mais quatro imagens do outro, todas iguaizinhas. Depois, colocou-as dentro de um saquinho branco, semelhante a um saquinho de pipoca, e perguntou:
– Seu irmão?
– Sim! – disse Clarita, sem titubear.
E a menina voltou para casa feliz com a foto de seu boletim que, de cara, prenunciava que naquele ano escolar, coisas inacreditáveis iriam acontecer.
Do fel ao céu
Clarita e Mariti voltavam juntas da escola atualizando as resenhas do dia, quando escutaram:
– CLARITA! MARITI!
Era Habib Júnior, aluno da mesma escola das meninas, gritando o nome das duas do outro lado da rua.
– O QUE FOI, SEU DESMANCHA PRAZER? – reclamou Clarita, aborrecida com a intromissão do menino.
– É QUE MINHA MÃE FEZ SONHOS DE GOIABA E DISSE QUE EU POSSO LEVAR DUAS PESSOAS PRA LANCHAR COMIGO. – berrou o menino.
– GOIABA? ÊBA! A GENTE ACEITA! – gritou Clarita, imediatamente.
– Eu amo sonho com recheio de goiaba. Vamos! Vamos! – completou Mariti, enquanto atravessavam a rua para encontrar o menino.
– Mas eu não lembro de ter convidado vocês!
– Como não? – protestou Clarita.
– Eu só lembro de ter dito, que tenho direito de convidar duas pessoas para o lanche.
– Então! – justificou Clarita, que apontando para si mesma, disse – uma e duas! – enquanto apontava para Mariti.
– Espertinha! Eu não disse: Clarita e Mariti, nós vamos comer vários deliciosos sonhos na minha casa,
– É verdade, não disse. – admitiu Mariti, franzindo a testa e esticando os lábios para os lados, enquanto olhava nos olhos da amiga.
– Mas…
– Mas o que, Habib Júnior? – interrompeu Clarita, irritada.
– Mas vocês poderão ser as escolhidas. Basta que me façam um pequeno favor.
– Favor? Diga logo, Agá Jota, vá! O que você quer? – brincou Clarita com o menino.
– É que eu preciso dar um recado de minha mãe à Dona Corró, amiga dela. Só depois a gente pode comer os sonhos.
– Ah é? E o que nós temos a ver com isso? – perguntou Clarita, encucada.
– Dona Corró mora ali naquela casa. – falou o menino, enquanto apontava para uma casa velha, vermelha e que tinha fechadas a porta e a janela. – e continuou – Aí é que vocês duas entram na história.
– Hum! – resmungou Mariti.
– Sozinho já tentei gritar, mas não consigo fazer com que ela me escute, Dona Corró deve estar muito surda.
– E daí, garoto? Diz logo o que quer de nós. – e, alisando a barriga, Mariti desabafou – Meu estômago já está murcho de fome.
– Então… vai que ela escuta, se vocês duas gritarem ao mesmo tempo! O que acham?
– É só isso o que quer de nós? – perguntou Clarita.
– Só isso, meninas! Mais nada. Depois do recado dado, a missão estará cumprida e os sonhos serão de vocês.
– Moleza! Então, vamos lá Mariti! Pelos sonhos valerá a pena gastarmos nossa poderosa voz. – ironizou Clarita, pois os meninos rotulavam a voz feminina como estridente e irritante, e agora um deles precisava dela para executar uma simples tarefa. E puxando a amiga pela mão, caminhou até a calçada, palco onde cumpririam a simples missão.
Naquela casa apontada pelo menino, há pouco tempo foi morar uma senhora baixinha e descabelada e que não gostava do barulho que as crianças faziam na rua, por isso vivia a implicar com elas. Criou-se assim uma intriga entre as partes, e a senhora mal humorada ganhou o apelido de Corró, usado pelas crianças para insultar aquela que as perseguia.
Habib Júnior apostava que, já que as duas meninas não moravam por ali, possivelmente não sabiam da existência de Dona Corró, nem de como enfurecê-la. O pior é que ele estava certo!
– Vamos lá! Chamaremos bem alto a amiga de sua mãe, ela escutará e você cumprirá o restante do nosso trato, ok? – perguntou Clarita.
– Fechado! Esse é o nosso acordo e será cumprido! – prometeu Habib Júnior. – Agora parem de tagarelar e cumpram a parte de vocês. – logo, o negociador de sonhos desceu da calçada para observar a cena.
Otimista, Clarita abaixou-se, deu uma olhadinha pelo buraco da fechadura e perguntou:
– Preparada, amiga?
– Demorou! – respondeu Mariti.
Finalmente, juntas contaram até três e:
– CORRÓÓÓÓ!! – gritaram.
O grito foi tão alto que chamou a atenção das crianças que brincavam na rua, e todas pararam para ver o que estava acontecendo.
Segundos depois…
– Ela está mesmo surda, hein Habib Júnior? Credo! Nem sinal!
E, ao voltar a olhar pelo buraco da fechadura, Clarita viu algo estranho. A tal mulher, baixinha e descabelada, surgiu no final do corredor, apanhou algo no chão e agora se dirigia lentamente até a porta, ralhando. Não dava para escutar o que ela dizia, mas dava para perceber que boa coisa não era.
– É, eu bem que desconfiei! Ela só pode ser mesmo surdinha! Por favor, gritem mais alto, meninas! Ela precisa escutar, ou não poderei dar o recado de minha mãe e vocês não comerão os sonhos de goiaba. – chantageou o menino, e sugeriu – Acho melhor também baterem bem forte na porta, enquanto gritam.
Àquela altura e pela cara de brava da moradora da casa, notando que a plateia cochichava e ria enquanto elas gritavam, Clarita logo desconfiou de que estavam sendo envolvidas em uma grande encrenca. Corajosa e esperta, resolveu ir em frente.
– Vamos lá Mariti, fôlego! Mais uma vez: um, dois, três: CORRÓÓÓÓ!! – e, com as mãos fechadas, as duas meninas socaram a porta de madeira da casa vermelha. Rapidamente, Clarita abaixou-se de novo para olhar pelo buraco da fechadura. A velhinha emburrada vinha cambaleando e estava bem próxima da porta, já sendo possível ver que realmente lhe saía fumaça pelas ventas, e que o que carregava em suas mãos e parecia estar bastante pesado, era um grande penico branco. Clarita precisava concluir o plano imediatamente, e assim o fez.
– Desisto, amigo! Infelizmente você não dará seu recado, e o pior e mais difícil de aceitar, é que desta vez não comeremos os deliciosos sonhos. – dramatizou a menina. – Não tem ninguém em casa!
Faminta, Mariti fechou a cara, contrariada.
– Não pode ser, Clarita! Dona Corró é muito velhinha e nunca sai de casa! Vocês precisam ter mais paciência! Afinal, nós temos um trato e a recompensa será muito boa. – apelou Habib Júnior, decepcionado com o comunicado do abandono da missão.
– Eu sinto muito! – lamentou Clarita, que distanciando-se rapidamente da porta enquanto puxava Mariti pela mão, sugeriu – Mas se está duvidando, veja com seus próprios olhos. Não é uma questão de paciência e nem de palavra, não tem ninguém em casa mesmo!
Inconformado, Habib Júnior abaixou-se para olhar pelo buraco da fechadura. Àquela altura, Clarita e Mariti já assistiam à tudo do outro lado da rua. E antes mesmo que um dos olhos de Habib Júnior fechasse, para que o outro bisbilhotasse, a porta se abriu. Assustado, o menino arregalou os olhos.
– CORRÓ É VOCÊ, SEU PESTE!!
Lá estava Dona Corró com o grande penico branco nas mãos. Nem deu tempo para Habib Júnior respirar.
XUÁÁÁÁ!!!
Dona Corró despejou todo o xixi do penico, na cabeça do menino malvado. Um verdadeiro banho quente, foi o que tomou o mentiroso.
– Bem feito! Pensou que eu fosse besta, né? – disse Clarita, às gargalhadas – E quem manda não respeitar os mais velhos!
– Eu não acredito que você fez isso, Clarita! Você não tem medo? Habib Júnior vive aprontando com todo mundo, e pela primeira vez a rua inteira está rindo dele. Ele não vai deixar isso barato! – preveniu a amiga, preocupada.
– Eu não tenho medo dele e nem de menino nenhum, Mariti! E tem mais… o que foi que eu fiz? Diga aí pra mim!
Confusa, Mariti olhou para Clarita.
– Você me viu fazer alguma coisa? – Clarita voltou a perguntar.
– Na verdade… não!
– Você fez? – provocou Clarita.
– Eu?! – reagiu Mariti, embasbacada.
– Então! Por que estamos falando sobre isso? Eu, hein!!
Tendo o feitiço se virado contra o feiticeiro, as duas meninas voltaram às resenhas do dia e ao caminho que as levaria até suas casas.
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